A PARTÍCULA DE DEUS


A esta altura muitos já devem estar ao tanto das notícias que chegaram no final do ano passado desde a sede da Organização Européia para a Pesquisa Nuclear (em francês, Conseil Européen pour la Recherche Nucléaire ou CERN, como é mais conhecida), e que foram parcialmente confirmadas por cientistas americanos do acelerador Tevatron/Fermilab esta semana.
Resumidamente, os mais de cem pesquisadores que neste momento realizam experimentos nos dois grandes aceleradores obtiveram evidências -ainda não conclusivas- sobre a possível existência do bóson de Higgs, partícula subatômica hipotética que serviria para dar massa a todas as outras partículas do universo.

A expectativa dos cientistas do CERN e do Fermilab se justifica. O bóson de Higgs (em homenagem a Peter Higgs, que em 1964 junto com outros cientistas postulou teoricamente sua existência) é fundamental para manter em pé o chamado modelo standard da física de partículas, a principal teoria que tenta explicar boa parte das coisas que ocorrem no universo, entre elas, a formação de toda a matéria conhecida.

O modelo standard da física começou a ser erguido a partir da década de 1970 e novas partículas com nomes exóticos como lepton, quark, charm, tau, strange foram surgindo, algumas inicialmente em modelos matemáticos e depois comprovadas experimentalmente. Mas do bóson de Higgs, nem notícia.

Contrariado com esse fato, outro grande físico, Leon Lederman, ganhador do prêmio Nobel, escreveu em 1993 um livro cujo título inicial era "A Partícula Maldita" ("The Goddamn Particle"), em alusão às dificuldades em encontrá-la. Entretanto, o editor achando que o título “maldita” poderia resultar ofensivo decidiu trocá-lo por “A partícula de Deus”, uma denominação que Higgs, como ateu, sempre questionou e que até agora gera uma grande e desnecessária discussão. De fato, a existência do bóson de Higgs permitiria explicar como toda a matéria poderia ter surgido a partir do nada, algo que afetaria um dos argumentos preferidos pelos teólogos para defender a ideia de um criador (não à toa, o papa João Paulo II pediu teria pedido ao físico Stephen Hawking para não estudar a origem do universo, solicitação que felizmente não foi atendida; ver aquiaquiaqui e no vídeo abaixo).

Mas a postagem de hoje não é sobre física, e sim sobre religião e sobre ciência. No final deste texto e aqui disponibilizamos links que direcionam o leitor para páginas mais apropriadas para entender a importância da existência ou não do bóson de Higgs.

Na pesquisa para escrever esta coluna cheguei a um artigo do teólogo Alister McGrath. Não sou fã dele, mas reconheço que vez ou outra apresenta bons argumentos e é capaz de debater à altura com cientistas e filósofos ilustres como Richard Dawkins e Daniel Dennet.

McGrath coloca uma questão muito instigante, não estaria o bóson de Higgs para os cientistas assim como Deus para os religiosos? De fato, cientistas utilizam uma partícula ainda inexistente para apoiar uma teoria que explicaria o resto das coisas que podem ser observadas. Por enquanto, a existência do bóson de Higgs só ocorre porque ela dá sustentação a uma concepção do universo que é cara à comunidade científica. 



De acordo com McGrath – que provocativamente chama o bóson de Higgs “partícula da fé” - o mesmo acontece com os religiosos, para quem só a existência de Deus dá sentido ao universo que eles podem observar. 

Assim, por que esses cientistas chatos ficam no pé dos crentes pedindo provas da existência de Deus quando eles fazem a mesma coisa, sustentando toda uma teoria do universo encima de uma partícula que só existe na imaginação do Sr. Higgs?

A colocação de McGrath não está totalmente errada, mas como foi bem observado pelo biólogo PZ Myers em seu ótimo blog Pharyngula, ignora o fundamental. Foi justamente para não permanecer no campo da fé que centenas de cientistas de mais de 100 países juntaram nove bilhões de dólares para construir a maior e mais sofisticada máquina da história da humanidade, um imenso tubo/acelerador de prótons de mais de 27 km localizado 175 metros abaixo do nível do solo na fronteira franco-suíça. 



Tudo para quê? Para testar uma hipótese. 
Se a hipótese não for confirmada, todo o modelo standard da física terá que ser revisto. Sem problema. Nada melhor para a ciência que abandonar velhas teorias quando as evidências não mais as suportam. Isso faz parte do seu ethos. 

E aí está toda a diferença. Para a religião é impensável testar a hipótese de Deus. O questionamento fica sempre truncado pelo dogma. Questionar é pecado. Assim, nossas faculdades de pensamento crítico não se desenvolvem.

O mais preocupante é que muitos –temo que a maioria- querem que essa forma não questionadora de pensar volte a ser predominante em nossa sociedade, até nos bancos escolares.

No momento que escrevo esta coluna as autoridades políticas de Ilhéus declaram obrigatória a reza do pai nosso nas escolas, as de Araguaína exigem a leitura da bíblia em sala de aula, deputados do Rio aprovam a liberação de R$ 5 mi dos cofres públicos para evento religioso, nosso prefeito entrega as chaves da cidade para o deus dos cristãos e nossa presidenta coloca um líder religioso no ministério da pesca, assunto sobre o qual o novo ministro, como faz questão de esclarecer, não entende patavina.

Quando vejo este panorama tão pouco propício à cultura da ciência, vem à minha mente uma frase do saudoso Carl Sagan...
“A chama da vela escorre. Seu pequeno lago de luz tremula. A escuridão se avoluma. Os demônios começam a se agitar.”

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